Elisabete Gonçalves
Amiga e testemunha da
38ª Companhia de Comandos
TEXTOS DA
ELISABETE PARA A 38ª COMPANHIA DE COMANDOS
“Palpita um peito d’aço em cada farda. Do 13...nem um passo p'rá retaguarda!”
Percebo a
revolta. Entendo-os quando dizem “naquele tempo é que era
difícil!”, porque sem escape a um Destino que não escolheram,
viam o tamanho da sua insignificância perante o “interesse
nacional” para quem a sua vida pouco valia, bem patentes na
expressão “Carne para Canhão”. E eram!
Quando a Companhia de Caçadores 95, primeira tropa a pisar solo
angolano e instalada num Seminário ainda em construção, depois
de ter marchado garbosamente sob os aplausos e “vivas!”da
populaça pelas principais avenidas de Luanda, abriu os caixotes
de material para se guarnecer...ficou estilhaçada como se as
granadas ferrugentas que lá vinham tivessem explodido ali mesmo,
na ponta de um dilagrama: material a que nunca tinha sido feito
“Auto de Incapacidade”ou “Ruína Prematura", tal como capacetes
sem alça, panos de tenda esfarrapados, marmitas e cantis
deformados e inutilizados, armas sem percutor e muito mais....seriam
o material que os acompanharia na desgraça. Viram que, quem lhes
tinha atribuído aquele material, contava que pouco durassem,
pois a quem se augura uma curta vida...qualquer coisa serve.
Depois da queixa apresentada, pelo Comandante de Companhia ao
QG, receberam material novo e a noticia de que "alguém"da
unidade de origem de tal sucata, tinha sofrido uma punição e
apanhado uma “castanhada valente”, como o meu pai gosta de dizer.
Para a primeira operação que fizeram e que apenas deveria durar
8 dias, foi-lhes dito para apenas meterem no saco de bagagem e
bornal o menos possível (1 toalha, 1 pano de tenda, 1 manta, 1
cuecas e 1 par de sapatilhas)....e que depois do ano inteiro que
acabaram por ficar sem regressar a Luanda, fez com que passassem
365 dias a dormir no chão e parecessem os figurantes de “Aljubarrota”,
quando sem garbo e de olhar vago, esfarrapados e magros como
cães vadios, voltaram a passar naquelas avenidas de má-memória.
A Guerra Clássica para que tinham sido preparados (com inimigo
do “outro lado”, separados por terra de ninguém) foi “trunfo
inglório”, naquele mato em que avançavam em coluna e abriam
caminho à catanada, boquiabertos (tanto os homens como as
pacaças, que paravam o seu lento ruminar a tentar perceber que
estranho "bicho" era aquele) pelo que viam, na surpresa de uma
Guerra de Guerrilha, em que tinham que se procurar posições
inimigas, escondidas em terreno que conheciam como a palma das
mãos e atacando sempre de emboscada.
O clima e os animais também se juntaram no “abate” daqueles
intrusos, pois muitos ficaram cegos no lançamento preciso de
cobras-cuspideiras e sofreram a dor aguda e venenosa de
escorpiões que se lhes enfiavam na farda pendurada nas árvores ,
que secava do suor e da canícula, enquanto os seus donos
descansavam um pouco em camas de capim. As mordidelas de
mosquitos, malária, paludismo e desarranjo interior que se
ganhava no desespero de beber água de charcos, roubava-lhes as
tão preciosas forças, que deveriam mantê-los duplamente alerta
para todos os perigos que não conheciam e foram pagos em vidas
de jovens, que deixaram um País sangrado de toda a força juvenil
de uma geração.
No rebentamento de minas anti-pessoais ligadas a destruidores "fornilhos",
engoliram as lágrimas na procura de algum pedaço dos camaradas
vaporizados, que sentiam no dever de mandar no caixão que seria
devolvido às famílias. Fizeram-se homens à força na certeza de
que seriam os próximos a tombar. Retesaram os músculos
massacrados da marcha para não lamentarem as saudades de quem
lhes era querido e trocavam o medo por visões de um lar bem
longe, onde tinham a certeza que fervia serenamente num pote ao
lume, uma sopa de couves e feijões.
Sem entenderem bem o porquê, puseram sempre o máximo no mínimo
que faziam, porque eram de raça indómita e juraram, perante a
bandeira, mesmo com o risco da própria vida, não darem nem um
passo à retaguarda.
Ficaram, na desgraça, unidos para sempre como verdadeiros irmãos
e cinquenta anos depois nas comemorações dos 50 anos da sua
partida, no RI 13 a que chamam “a nossa casa”, abraçaram-se com
a força de uma vida os que restavam, lavados em lágrimas
contidas durante meio século!
Eu...chorei também.
“ Palpita um peito d’aço em cada farda. Do 13...nem um passo
p'rá retaguarda!”
( Foto: Navio Niassa/ Batalhão de Caçadores 95 em 21 de Abril de
1961)